O texto, de uma grande intensidade poética, onde Alice Maravilhas traduz, palavra a palavra, imagens, sons, cheiros, emoções vindas do fundo da memória. MG.
Alice Maravilhas, Lisboa, Outubro, Novembro de 2013
I
Porque ando descalça a sentir o toque
Em toque toques, devagar para sentir o mundo
Pé ante pé, sem o mundo parar, giro em torno do dia-a-dia
com canseiras. Descalça.
Todos os sapatos servem para conhecer o desconhecido
que espreita nas minhas aventuras, no querer estar com o sentir
Os sapatos são os dias, uns são leves, ou com cor,
ou apertam, ou escorregam. São os sapatos
Às vezes calço-me sem saber o que não interessa
porque é preciso lá estar e vai-se caminhando com o desleixo do dia.
Às vezes calço-me e sei que o sol está, a luz brilha
nos meus sapatos e sou vaidosa.
Também dançam em bicos de pé solto, e sinto-me voar.
Os meus sapatos também voam
II
Marcaste sim, desenhaste-me a vida com cheiros e histórias,
rasgaste os dias em tons suaves, minha irmã.
Tiraste-me do desassossego dos dias que escureciam e
deste-me formas da alegria.
Nos dias de solidão, frios dos maus tratos, tu com conversas desmontavas e resolvias.
Ouvindo as tuas histórias sem nexo construía uma
realidade, a minha realidade, com a vida onde o desejo se soltava, onde o mundo
era doce, onde todos sorriam e brincavam com liberdade
Depois lá vinham as zangas e os gritos. Ou se a
raiva se instalava sem sentido, era mais físico. Então, tu chegavas, e nas tuas
histórias e nos segredos se apaziguavam as raivas.
Hoje tudo ficou para trás e sem querer as
recordações voltam, com outras formas, outras histórias de já sou mulher, com
outras vidas.
III
Lembro-me
dela na infância, talvez pelos meus quatro anos, na Beira Baixa, terras secas
de frio e calor. Assim conheci a minha avó, não doce ou talvez escondesse essa
doçura no olhar, mas uma verdadeira mulher que me acolhia com amor
Uma
avó gorducha, de faces rosadas, andar lento de dignidade e força, braços
abertos para o mundo onde todos se recolhiam. Assim construiu uma casa de
emoções, na freguesia do concelho de Idanha-a-Nova numa aldeia de construção de
granito e sombria. Uma casa com divisões escondidas por cortinas pesadas que
abrigavam na sua textura o inverno e onde facilmente se perdia a solidão
aquecida pelas braseiras espalhadas pelos quartos e salas. Uma casa com vida
própria, onde as tarefas com prazer apaziguavam a solidão da distância dos meus
pais e irmãos.
Imagens
soltas: na Páscoa, as visitas do padre de casa em casa levando o cruxifixo que todos
a beijavam; e os rebuçados atirados ao ar para que cada um apanhasse e depressa
para mais ter.
Da
escola primária onde a minha avó ensinava. Todos sentados no quintal da casa a
aprender a ler, mesmo com os livros de pernas para o ar, desenhávamos as letras
visualmente.
Da
matança do porco. Eu, proibida de assistir ao ritual, ouvia os grunhidos e de
longe sentia a agonia do animal.
Da
Bica de Azeite, um pão achatado típico da Beira Baixa à base de azeite sem
fermento. Os biscoitos em S também à base de azeite, elemento fundamental da
agricultura da zona
Cresci
… sentindo sempre a presença da minha avó em minha defesa, a acolher-me de forma
diferente dos meus irmãos
Quando
visito a aldeia, passo pela casa que outrora era enorme e num sentimento de
rever todas as imagens ligadas à minha avó, vejo uma casa pequena que outrora
fora enorme pelo amor .
Hoje
percebo esta ligação de amor, avó e neta, numa memória importantíssima que me
ajuda em momento menos fáceis. O meu nome, Alice, o mesmo da minha bisavó que
faleceu cedo, ainda a minha avó era adolescente.
Recordo
com prazer os dias da minha infância passados com a minha avó, quando, e de mão
dada cantarolávamos as duas “A Mimi é da vovó e a vovó é da Mimi”, e num
sorriso trocávamos beijinhos ainda hoje sinto marcados na minha pele
Hoje
calço outros sapatos e lembro-me que existem pessoas no nosso lado melhor da
vida.
Sem comentários:
Enviar um comentário