Sempre que me olho ao espelho e vejo esta cara enrugada, sem
o brilho que todos encontravam antes no meu olhar, um sentimento de impotência,
a percepção do estado quase terminal, deste meu final de vida, submerge-me. Tenho
oitenta e cinco anos, sou velha e sinto um vazio imenso dentro de mim.
Há dois anos, após a morte do Alberto, os meus filhos
decidiram que viesse morar nesta casa, um pouco mais pequena que a outra, o que
me facilitaria na mobilidade e, também, com o intuito de me aliviar do peso das
recordações da longa vida no nosso lar comum. Foi um período muito doloroso! Por diversas vezes, considerei
a morte, como solução para tanta dor, mas percebi que seria uma solução egoísta,
e, que o ónus se iria tornar insuportável para os meus filhos e netos.
Agora, nestes dias sem futuro, tento ocupar o tempo entre o
escritório, onde leio, escrevo e, por vezes, ainda pinto, e o quarto, onde
descanso durante horas: os médicos dizem que não posso fazer esforços, que o
meu coração está muito cansado. Aos fins-de-semana, este espaço gélido de solidão, enche-se
de calor e de vida, quando chegam os meus filhos e os netos, que vêm
deliciar-se com todos os pratos que sempre fiz e que todos apreciam tanto.
Hoje, uma sexta-feira de Dezembro, com um céu muito azul,
mas um frio cortante, já arrumei a cozinha e preparei tudo para amanhã. Vou
fazer-lhes o célebre bacalhau à Gomes de Sá e uma tarte de peras à alsaciana
que todos adoram. Dou uma volta pela casa, para ver se está tudo em ordem. Na sala, a bela
toalha vermelha já está sobre a mesa e as minhas orquídeas continuam lindas e a
florescer!
Então, o cansaço apodera-se mais uma vez de mim. Vou para o
meu quarto, sento-me na cama, olho à minha volta e sinto-me impotente perante
tanto vazio. Subitamente, o meu olhar é atraído para o tampo da cómoda, onde se
encontra o espelho da minha avó, que ninguém queria, e que eu aproveitei. É um
espelho antigo, pequeno, de moldura dourada, que após a morte da minha avó
ficou abandonado no fundo de uma gaveta. A sua face está toda salpicada de manchas,
mas continua a reflectir fielmente as nossas imagens e o mundo à sua volta.
Pego nele, extasiada. É uma maravilhosa peça de arte, plena
de histórias da família. Quem terá feito esta obra tão bela, tão cheia de
pormenores que me despertou o interesse, a mim, que, na altura era considerada
uma mulher moderna? Porque terei exigido tamanha relíquia?
Na altura, e já lá vão perto de quarenta anos, possuía um
pequeno atelier, onde trabalhava nas
minhas horas livres. Tinha tido aulas de pintura e aprendera algumas técnicas
de pintura a acrílico e a óleo, mas, o que mais me fascinava era poder criar e
utilizar vários materiais, tais como serradura, gesso, areia, desperdícios, que
colava, sobrepunha, criando diversas texturas. E foi assim que descobri este
espelho e, que me apropriei dele, para fazer algumas experiências:
desmontava-o, utilizava cópias em tela, na sua face colava ou pintava imagens
de uma menina curiosa, que era uma montagem feita a partir de uma fotografia
minha de criança. Por vezes, as imagens atravessavam o espelho, como que em
busca do que se encontraria mais além.
Agora, olho-me nessa mesma superfície que reflecte o meu
rosto enrugado que há muito perdeu o brilho que todos encontravam no meu olhar. Subitamente, sinto uma dor no peito… volto a olhar-me, mas a
minha imagem surge desfocada, como se eu me estivesse numa figura liliputiana.
Como se me estivesse a transformar numa partícula que está a atravessar aquela
face polida e manchada onde já não me encontro.
Então, a dor no meu peito torna-se lancinante e eu deixo
cair o espelho, ouvindo, como se fosse de muito longe, o ruído dos seus
estilhaços a espalharem-se no chão.
Deito-me.
Alda Rosa, Lisboa, Dezembro de 2013
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