Da coletânea de textos de Alda Rosa, ficção e autobiografia, que vão figurar no próximo livro das nossas oficinas, destacamos este testemunho pungente. Uma muito bela e muito tocante homenagem ao seu pai. MG
Alda Rosa, Lisboa, 30 de
Março de 2014
Lembras-te
paizinho, do triciclo que me compraste quando eu tinha dois anos e que eu parti
naquela aventura de querer andar de marcha atrás? Tu, habilmente, reconstruíste
a minha máquina e eu pude continuar a brincar com ela. E recordas-te de quando
íamos de férias para a aldeia e corrias comigo pelo campo, ensinando-me a
conhecer, pelo nome, todas as árvores e arbustos? Transmitias-me tanta
confiança, que aprendi contigo a não ter medo de alguns animais, como cobras, ratos e
lagartos... Depois, quando dei as primeiras braçadas na água gélida das piscinas
naturais do Agroal, tão pequenina que perdia facilmente o pé, não sentia
receio, porque estavas sempre ao meu lado.
À noite,
chegavas a casa com o Diário de Notícias e eu pegava nele, acocorava-me a um
canto da cozinha, e colocava-o no chão para o ler de trás para diante. Este
é um hábito que mantenho até aos dias de hoje, com jornais e revistas.
Como eu gostava
do escritório onde trabalhavas, na rua da Glória! Desde os dez anos, sempre que
não tinha aulas, levavas-me para lá, contigo. Recordo aquela casa enorme, com
uma sala que era o centro da minha fantasia. Nesse espaço, colocavas as
colecções de roupa feminina que recebias da fábrica do Porto e separavas as
peças que posteriormente eram distribuídas pelas boutiques de Lisboa. Em cada
mudança de estação, lá estava eu a experimentar vestidos, saias, blusas. Tu até
deixavas que eu usasse alfinetes para os ajustar ao meu corpo. Depois, fazia um
desfile. Eras o único espectador, e eu a única modelo, mas divertíamo-nos
muito. Um dia, ensinaste-me a dactilografar, e eu sentia-me tão orgulhosa por
escrever as minhas redacções naquela máquina preta, que produzia música de cada
vez que se teclava numa letra.
Continuas tão
presente na minha vida… Recordas-te
das nossas idas à Ervanária Rosil, na rua da Madalena, plena de uma enorme variedade
de perfumes que vinham de todas as ervas medicinais lá existentes, que serviam
para as mais variadas mezinhas? Eras um grande apologista da utilização de
infusões ou pomadas para tratar algumas das nossas maleitas. Só me faziam
impressão as sanguessugas, (que também tínhamos em casa), porque receava que um
pedaço do meu corpo fosse sugado para dentro daqueles frascos.
Sabes?, as
nossas conversas ainda hoje me alimentam. Apesar de só teres concluído o curso
comercial, sempre foste um homem ávido pelo conhecimento. Quanto tempo passámos
a falar de livros! Foi contigo que conheci autores como Miguel Torga, Soeiro
Pereira Gomes, Eça de Queiroz, Júlio Verne, Vítor Hugo e tantos outros. Então, foi aquela
noite de 29 de Novembro de 1978, em que eu estava muito feliz, pois tinha
acabado de saber que tinha vaga no curso de Medicina. Mostraste-te
satisfeito, mas também preocupado, referindo que não sabias se ias ter força
para me ajudar a alcançar este meu desejo. Fiquei desapontada e incrédula. Porque não havias de ter força? Tu eras o meu
super-homem, nada de mal te poderia acontecer! Como poderias estar a adivinhar
a catástrofe que caiu sobre nós, três dias depois?
Lembras-te, Pai?
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