terça-feira, 16 de dezembro de 2014

O Homem sem nome e a Mulher sem rosto.

Sem desprimor para todos os excelentes trabalhos que têm saído das nossas oficinas de escrita,  onde se trabalha no duro!!, este conto do Ricardo Estevens está muitos furos acima da escala. Representa várias coisas notáveis, a primeira das quais o inegável talento do seu autor. Outra, a tenacidade com que Ricardo se entregou a um trabalho que lhe correu mal, e ainda bem, já que, depois de um aparentemente desmotivante resultado inicial, ele pode chegar a este resultado soberbo. Não foi à primeira. Nem à segunda. Mas foi e por mérito próprio e muito trabalho. Generosamente, ele reconhece que em dois ou três meses (duas oficinas, pelo menos)  evoluiu «alguns anos». É o poder do ofício quando a exigência é a da mestria. MG
 
Bernardo Pacheco (ilustração)

O Homem sem nome e a Mulher sem rosto.
 
Sobram poucos metros entre aquele sobreiro e uma pequena depressão na terra enxuta. O tique e o taque marcam para lá das vinte e três nas areias Cronos e a Lua já deambula no septuagésimo nono soluço de altitude quando, descuidada, uma lágrima desliza na bochecha de uma nuvem cinza, quase negra de quase luto, e com a pontaria do acaso cai na consequência de uma cova situada a milhares de decímetros daquele sobreiro a tudo alheio. De depressão a cova passa a lago e faz da lágrima, filha do pranto, fonte mãe da vida.

É aqui, sob as coordenadas geográficas de um Alentejo, onde há numa planície quase deserta uma única árvore a florescer de vida. Completamente isolada é ela o foco de tudo. Este quadro é pintado com as mesmas cores da paleta de tantos outros diferindo apenas e somente no traço que o pintor e o destino lhe deram.

Podia ter acontecido a qualquer ser em qualquer altura sem razão alguma, ou a ser algum e em nenhuma altura. Mas foi àquele corvo de poleiro naquele sobreiro que aconteceu. Aquando de se banhar e matar a sede na água fonte da vida que a sua não cessou mas perto, salva só pela lei de Lavoisier, isto é certo. Cai a pena das asas de voar, as articulações começam a partir e a formar ângulos opostos aos de antes, mais ossos nas “antes-asas”, agora ligamentos, músculos e por cima nova carne em retalhos: mãos. Lentamente o bico entra em decomposição até ficarem só dois pedaços de carne: lábios. A boca prenha de dentes enche-se com a língua inchada e em sangue de trincada. Os ossos começam a pesar. Vê com os novos olhos o velho chão distanciar-se, estranhamente agora que não voa. O negro das patas clareia até ser o moreno das pernas, excepto na esquerda onde, como se fosse tinta, o escarlate escorre na mesma direcção e forma um grosso aro abraçando o gémeo e a canela. O seu reflexo no lago é estranho, não se reconhece. É um estranho e à sua agora estranha mente, é branco. Branco de quem nasce novamente e deixa de lhe ser estranho porque se tudo é novo é de esperar que também seja nova a mente. O branco imaculado começa então a ganhar outras cores que o preenchem. Cor-de-conhecimento e tons de razão garridos. Começa a absorver as cores em seu redor e pinta numa tela igual à tela que deveria ser a de Adão antes da Eva, antes até do Criador; À de um recém-nascido antes de cometer o crime de perder a inocência; â de um Homem. Depois das cores, palavras. De alguma forma o seu pensamento é encriptado agora com símbolos que reconhece como se tivessem sido seus desde sempre. A palavra ler; escrever; palavra; raciocínio.

E se bem que tudo tem uma explicação, esta eu não a sei. Sei porém que agora o corvo é homem, e agora o homem já não é um corvo. O pobre animal, menos selvagem, mais consciente; menos asas, mais braços; nas penas menos no pêlo mais; 

Passados algum tempo numa auto-avaliação exaustiva junto ao espelho-lago sente os primeiros impulsos naturais, os mais selvagens que temos como os têm outros animais. A sede, matou-a de vez com aquela água ainda com alguma dificuldade em beber sem afundar nela também o nariz, e os olhos e a cara toda. Mas a fome ficou. Não uma fome de matéria, mas de mais “cores”, mais conhecimento, mais.

Procura saciar os porquês; quem; onde; como; enquanto isto, vislumbra o sobreiro e ao largo uma estrada de terra batida – pó. Ainda atabalhoado é por aí que se arrisca. No sentido contrário ao certo, seja ele qual for.

As altas temperaturas brincam com a sanidade deste Homem-menino perdido no caminho da casa que não sabe se tem. Neste momento as únicas certezas são: o horizonte para onde vai, e está o fim da estrada que quanto mais percorre mais chega só ao “meio”; e que o meio onde esteve lá atrás era só metade do meio onde está; de onde veio, aquele lago junto àquele sobreiro; e a própria dúvida que o atormenta e toma de assalto naquela caminhada com todas as interrogações sem respostas aparentes. Mas segue, talvez elas estejam já ali, naquele horizonte a par da estrela da manhã e da moça, que pisa de chinela e levanta o pó ao som que faz quando baila.

– Hmm? Está ali alguém? – urge em sí o impulso de lhe falar, de a conhecer, de saber se a conhece. Quer gritar, mas a voz amarrada pela sede não permite. Põe tudo o que tem, tudo o que lhe resta em força e arrasta-se numa última corrida, a mais exasperante e demorada de sempre, para ele a mais exasperante e vertiginosa, mais do que em qualquer voo. E voa até ela, estica o braço, ao toque dos seus dedos no ombro despido de Tágide desfaz-se no ar. Vê-se em Outubro no dia quinto. Da inquieta e inquietante só o pó das chinelas. Ao seu redor uma cidade inteira soerguida na direcção dos céus, em rectângulos trazidos para a terceira dimensão pela sua profundidade e num deles, separado apenas pelo frenesim do tráfego na Avenida rasgada em parelha à da República mais precisamente no nº186 sétimo piso, lá estava aquela figura feminina. No meio de tudo o que era tão novo e tão definido: os carros, as pessoas a caminho do trabalho em passo acelerado, o rugir da manhã de Lisboa. Foi ela que lhe furtou a atenção, envolta na dança da nuvem de fumo evocada a cada bafo no cigarro suspenso entre um dedo, a sensualidade e o outro. Finalmente, no tempo de um piscar de olhos, da queda de uma beata caramelo-baton lá de cima a cá abaixo a fumadora foi para dentro e do fumo tratou o vento.

– É isto! Não sei o quê senão que é ela – com esta certeza veio outra, desperta a recordação adormecida do desamor a cigarradas. A Cinco de Outubro continuou e de inerte só aquele tipo ali especado. Mas inerte só por fora, que por dentro acontecia num ritmo prestíssimo um jogo de perguntas e respostas que mais parecia de perguntas e perguntas.

– É-me familiar, a mim que não gosto de fumadoras. Não lhe sei o rosto, não o consegui perceber no meio daquela maldita nuvem de fumaça, todo o resto eu sei, mas o rosto não.

Aaarg! Aquela ali a quem não sei a cara seduziu-me com um “cigarrinho matinal”. A mim, que desprezo de fumadoras. Uma hora após a outra, enredado na memória dela, mira o 7º do nº186 e pensa na traição. A cada minuto sem a ver se junta um minuto da traição à curiosidade deste homem e ao vício de fumar daquela mulher. Provavelmente agora o viciado em fumo é ele, que não fuma. Ele que odeia fumadoras, que pensa mais nisso do que ela.

– Como é que me pôde acontecer isto? Amo-a sem sequer lhe saber a face, amo a maneira como fuma um cigarro, amo-a naquele andar naquela manhã a olhar por aquela janela sem me ver a ama-la cá em baixo.

– LOGO EU, que ABOMINO fumadoras!

Com a estrela da tarde chegou o fim do dia e já não é cinco de outubro data, é estrada de novo, e de novo incerteza. Assim como veio tudo foi, neste homem-trapo tudo míngua e crescente só o desgosto. Na velha estrada cruza com um velho escanifrado também ele errante. De barbas cor de cinza mal aparadas e cabelos recolhidos numa espécie de turbante mal-arranjado feito com as farripas de uma camisa negra. A sua pele é escura e rugosa, galvanizada pelo sol e pela poeira. Carrega às costas expostas um alforge com coisa pouca, nos pés sandálias a deixar sobrar mais pé que sola, e das canelas para cima só umas calças de um vermelho desbotado a esconder pouco mais que as vergonhas e uma marca que traz na perna esquerda.

– Quem vem lá? Sabes onde estamos? Para onde vais? Talvez te possas juntar a mim que caminho sozinho, ou deixar-me acompanhar-te se preferires –  pergunta o jovem sem obter mais do que um angustiante silêncio nos longos espaços entre as estas questões. Sem dizer o que quer que seja o velho busca o alforge de onde tira um pedaço de carne curada e um púcaro, para servir uns goles de vinho tinto ao homem sem nome. Dada a esmola, o velho numa voz rouca que segreda do fundo de um poço diz:

– Além –  apontando com o olhar para um vulto distante, deformado pelas ondas de calor que exala da terra cozida.

– Não sei que procuras, assim como vejo que não sabes tu, mas é naquela direcção que sopram os ventos. Se te tiraram algo é para lá que levam, e até que os ventos tornem a mudar de lá não volta.

Com isto o velho vidrou uma última vez os olhos no Homem Sem Nome e fez-se ao trilho oposto. Seguido de um assentir confiante o jovem parte na direcção aconselhada. Quanto mais se aproxima mais distinta se torna a figura do seu destino. Um sobreiro. Já exausto, alcança finalmente a sua sombra e ali passa o resto do dia e a noite.

Finalmente chega ao destino indicado pelo caminhante desconhecido e no entanto não há mais nada. Nem uma pista da mulher sem rosto ou do que seja. No dia que seguinte, sem força para muito, tenta subir à árvore e averiguar o espaço.  É quando um pé em falso num galho frágil, e uma fuga alvoraçada de um corvo abrigado na copa, lhe dão a deixa para amenizar a fadiga, para desistir desta busca que parece incessante por alguém vago. Tão vago como a memória do homem de perna traçada. E deixando caír o seu corpo num relaxamento completo, deixa caír também a esperança e a vontade. O chão estremece tal como estremeceu o chão onde estavam as raízes do pé de feijão de onde caiu também alguém da outra história. É então que volta à cena a lei de que já falei, regente da morte e da vida. Aquela carcaça ali jazida não é mais do que isso e serve uma ave vestida com as cores da morte. O pássaro, sedento e voraz ataca com a tenacidade e o ímpeto de encher o vazio deixado pelas presas que não conseguiu só ele sabe há quanto tempo. Depois de saciado e amansado o estômago o corvo resguarda-se novamente no sobreiro de onde surgiu, aquele que floresce de vida num sítio onde tudo é pó e tudo é só terra e eco até que alguma nuvem soprada de outras paragens torne a chorar um luto qualquer e dê de beber a um qualquer.

 

Ricardo Estevens
Lisboa 20/03/2014